16 de março de 2021 - Atualizado: 16 mar 2021 às 8:09
A estudante universitária Janaina Corrêa, de 24 anos, contraiu coronavírus em Macapá em abril de 2020, quando a doença havia acabado de chegar ao Brasil. Passou duas semanas com febre, náusea e falta de ar. Mas a doença não foi embora com esses sintomas. Além da falta de ar e da fadiga persistentes, começou a notar que estava perdendo muito cabelo. A situação se agravou quando ela, que já tinha perdido dois tios para a covid-19, viu sua mãe ser internada numa UTI com a doença.
“Aquilo me matou porque a gente só tem notícia de quem está em UTI uma vez por dia. E tem que esperar 24 horas para saber como sua mãe está. Dentro do hospital comecei a perceber que meu cabelo estava caindo muito porque onde eu andava, me encostava, eu via cabelo caindo. Ele não caía, ele despencava. Sempre tive muito cabelo, mas se tornou assustador porque viraram falhas no meu couro cabeludo.”
A mãe dela conseguiu se recuperar da covid-19, mas também passou a enfrentar queda de cabelo acentuada depois da infecção. Vários conhecidos delas relataram o mesmo sintoma. E hoje, quase um ano depois de sua infecção, o cabelo de Janaina voltou a ganhar volume.
Esses casos ilustram um sintoma associado que estima-se aparecer em 25% dos pacientes com a chamada covid-19 persistente (ou covid longa), que é uma condição de saúde que dura semanas ou meses depois do início da infecção pelo novo coronavírus, e não se manifesta necessariamente com os mesmos sintomas que afetaram a pessoa antes.
Há dezenas deles, como cansaço extremo, problemas de memória, dores nas articulações e erupções na pele. Segundo pesquisadores de universidades dos Estados Unidos, do México e da Suécia, que analisaram dezenas de estudos sobre o tema com 48 mil pacientes ao todo, os cinco sintomas mais comuns da covid prolongada são fadiga (58%), dor de cabeça (44%), dificuldade de atenção (27%), perda de cabelo (25%) e falta de ar (24%).
Há pelo menos sete estudos acadêmicos que abordam a ligação entre essa queda de cabelo acentuada e covid-19, mas as causas, a duração e os tratamentos ainda não estão muito claros. Estima-se que a covid longa esteja associada a duas formas de queda de cabelo acentuada já conhecidas da medicina: o eflúvio telógeno e a alopecia areata.
Segundo Paulo Criado, coordenador do departamento de medicina interna da Sociedade Brasileira de Dermatologia, problemas emocionais, doenças infecciosas ou autoimunes podem causar queda de cabelo de diversos tipos. O mais comum é a queda difusa em todo o couro cabeludo, que é chamada de eflúvio telógeno. Há pacientes com predisposição genética ou doenças autoimunes, por exemplo, que podem apresentar quedas em forma de rodelas, condição conhecida como alopecia areata.
Em entrevista à BBC News Brasil, Criado explica que é comum uma queda de cabelo acentuada meses depois de doenças infecciosas mais graves, como dengue, chikungunya, zika, além de episódios de estresse, perda de peso e parto.
“Esses todos são eflúvios. O que se acredita agora é que o coronavírus faça parte desse grupo de doenças que podem estar ligadas à queda capilar acentuada.”
Em geral, pacientes com perda de cabelo relatam que os fios começam a cair em volume bem maior do que o normal em torno de 2 ou 3 meses depois da infecção. E meses depois ele se recupera espontaneamente, sem tratamento.
No caso da alopecia areata, Andrew Messenger, professor honorário de dermatologia da Universidade de Sheffield e presidente do Instituto de Tricologia do Reino Unido, explica que os cientistas ainda têm diversas dúvidas sobre as causas e os mecanismos envolvidos.
“No momento, não temos uma imagem clara do que está acontecendo. Se o coronavírus serve de gatilho para quem já tem predisposição genética de desenvolver alopecia areata, que é uma doença capilar associada a uma reação autoimune, ou se isso está ligado a algum fator desconhecido ou ao estresse em torno da covid-19 no caso de pessoas sem essa predisposição genética”, afirmou à BBC News Brasil.
Especialistas afirmam que a pandemia ainda está no início e não é possível neste momento precisar a duração da perda de cabelo.
Diagnósticos e eventuais medicamentos para a alopecia devem ser avaliados caso a caso por um dermatologista. Mas não há nenhum indicativo até o momento de que os eventuais tratamentos sejam diferentes dos que costumam ser prescritos por médicos contra queda de cabelo comum, a exemplo da alimentação equilibrada.
A BBC News Brasil reúne abaixo o que se sabe até o momento sobre possíveis causas, fatores de risco, os mecanismos do corpo envolvidos, eventuais tratamentos, o que pode piorar ou não essa queda de cabelo acentuada e o que fazer nesses casos.
A função do cabelo vai bem além da nossa autoimagem: passa por aspectos como tato, sensibilidade e proteção de orifícios e da pele contra a radiação ultravioleta (UV).
Os pelos e fios de cabelo surgem no folículo piloso (ou raiz), uma espécie de “fábrica” localizada na camada profunda da pele que se desenvolve ao longo da primeira metade da gestação do bebê. Estima-se que cada pessoa tenha uns 5 milhões dessas raízes espalhadas por quase toda a superfície do corpo, sendo quase 100 mil no couro cabeludo. Esse número não muda na vida adulta.
A grande maioria produz um fio de cada vez, num complexo processo de “fabricação” na raiz. Envolve divisão celular que gera células na base para o crescimento do cabelo, e depois elementos como glândulas produtoras de sebo para manutenção e flexibilidade, células geradoras de melanina para a coloração dos fios e papilas que cuidam do ciclo de vida dos fios. Arrancar um fio “pela raiz”, por exemplo, pode danificar essa “fábrica”.
De modo simplificado, o que identificamos como fio de cabelo é a “parte de cima” da estrutura iniciada na raiz, ou seja, enxergamos uma haste de células já mortas que foi se revestindo principalmente de queratina, proteína que garante a sustentação dessa estrutura com várias camadas.
Em geral, esse ciclo de vida dura de dois a sete anos e é dividido em três fases. Primeiro, o fio de cabelo cresce quase 1 cm por mês ao longo de três anos, em média, na chamada fase anágena. Em seguida, passa de duas a três semanas na fase catágena, momento em que deixa de ser “alimentado” na base por novas células, para de crescer e se prepara para ser substituído. A terceira e última é a fase telógena (ou repouso), que dura de três a quatro meses. É nela que o cabelo cai ao ser expulso pelo novo fio que está sendo formado no mesmo folículo piloso.
O problema é que esse ciclo pode sofrer distúrbios a partir de problemas emocionais, anemia, doença autoimune ou doença infecciosa, por exemplo. E daí pode surgir o chamado eflúvio telógeno, que antecipa o fim da vida do cabelo: uma proporção muito maior de fios muda da fase de crescimento para a fase de queda.
Todo mundo costuma perder diariamente de 30 a 150 fios. E em condições como o eflúvio telógeno, o volume pode chegar a 300 por dia. Essa queda mais volumosa se dá como uma diminuição geral do volume de cabelo na cabeça como um todo.
Um fator que tem sido percebido nos casos de queda de cabelo acentuada ligada à covid é a distância temporal entre a infecção e a perda de fios. Isso se dá porque o eflúvio telógeno costuma ocorrer três meses depois do fator que desencadeou essa condição de saúde e pode durar de três a seis meses.
“As razões não estão claras para a ligação entre a queda de cabelo acentuada e a covid-19. Doenças associadas a altas temperaturas do corpo afetam o crescimento do cabelo pelos folículos capilares, que são mantidos na fase de repouso do ciclo capilar por dois ou três meses e daí eles caem. Por isso que pessoas com essa condição vivenciam a queda dos cabelos em torno de dois a três meses depois do evento que causou isso. Isso pode ser bastante dramático, com toda essa queda de cabelo, mas a grande maioria dos casos ele se recupera depois de meses”, explica Messenger, da Universidade de Sheffield.
A causa é desconhecida em um terço dos casos diagnosticados de eflúvio telógeno, segundo dados da Associação Britânica de Dermatologia. E os gatilhos mais comuns são parto, perda de peso acentuada, trauma, tratamento de câncer, doenças graves ou mesmo um acontecimento bastante relevante na vida de alguém (como a perda de um parente próximo).
Segundo Michael Freeman, professor da Bond University e diretor do departamento de dermatologia do Gold Coast Hospital, ambos na Austrália, o surgimento do eflúvio telógeno nessas situações funciona como se o corpo abandonasse temporariamente funções desnecessárias em momentos de grande estresse. Ele aponta que a alimentação costuma ser um fator relevante para quedas e recuperações. “Não é só a covid que gera esse efeito. Se seus níveis de ferro no sangue estão baixos, isso vai te afetar mais do que a outras pessoas”, explicou à BBC News Brasil. Se a deficiência de ferro for sanada, “o cabelo voltará com o tempo.”
De acordo com a Associação Britânica de Dermatologia, a escassez de cabelo só se torna visível em casos bem graves de eflúvio telógeno e raramente essa condição demanda o uso de peruca.
“Mas não duvido que possa ocorrer com algumas pessoas nessa pandemia. Como os pacientes que tiveram covid grave e ficaram internados em UTI, entubados por 60 dias. Pode até acontecer uma situação dessa, mas em geral não chega a ficar com uma calvície total. Há uma diminuição da densidade do cabelo. Fica mais rarefeito”, diz Paulo Criado, da Sociedade Brasileira de Dermatologia.
Em um estudo de pesquisadores da Wayne State University e do Hospital Henry Ford, ambos em Detroit (EUA), com 552 pacientes infectados com coronavírus entre fevereiro e setembro de 2020, foram diagnosticados 10 pacientes com eflúvio telógeno associado à covid-19, sendo 9 mulheres e idade média de 49 anos.
No estudo, os pesquisadores levantam possíveis causas para a queda de cabelo acentuada, como fatores psicossociais e estresse psicológico. Eles aventam também outras hipóteses dos mecanismos por trás disso, como a infecção multissistêmica.
Numa delas, uma cascata de coagulação surge no corpo em resposta à infecção por covid-19, o que leva a queda na concentração de proteínas anticoagulantes (dada a queda de produção e o aumento do consumo). Esses fatores podem levar à formação de microtrombos (pequenos coágulos) que podem obstruir o suprimento de sangue para os folículos capilares.
Um outro estudo, de dez pesquisadores do Montefiore Medical Center, em Nova York (EUA), investigou outros 10 pacientes que desenvolveram queda de cabelo acentuada entre 3 e 7 meses depois de serem infectadas com coronavírus. Todas eram mulheres, com idade média de 55 anos, sem histórico de eflúvio telógeno antes da covid.
“Com um número crescente de pacientes recuperados, o risco de desenvolverem essa manifestação dermatológica física e emocionalmente angustiante deve continuar.”
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